O Medo, a Coragem, o Rejeitado e a Rejeição
necessária
para aceitar as coisas que não podemos
modificar,
Coragem para modificar aquelas que
podemos,
e Sabedoria para distinguir umas das
outras"
Um dia um senhor chamado Rejeitado perdeu sua cadelinha; grande foi o seu pesar, por onde andaria sua cadelinha?
Deste dia em diante, sem saber exatamente o porquê, o senhor Rejeitado passou a ser constantemente visitado pela senhora Rejeição, sua vizinha do lado, mas apesar de toda a familiaridade e proximidade, o senhor Rejeitado não conseguia sentir-se confortável na presença da senhora Rejeição, porém o senhor Rejeitado não tinha coragem de dizer isto olhando diretamente nos olhos dela — o senhor Rejeitado não olhava nos olhos de ninguém.
"Como evitar que Rejeição venha sempre à minha casa, como?", pensava Rejeitado ao longo de seus dias, até que finalmente Rejeitado achou a solução para afugentar de sua vida Rejeição, de forma a nunca mais sentir sua inconveniente presença — Rejeitado era muito inteligente.
Descobrindo através dos vizinhos que Rejeição tinha uma verdadeira fobia por cães ferozes, Rejeitado adquiriu de terceiros um cão muito feroz cujo nome era Medo, deixando-o solto diuturnamente pelo seu quintal — Rejeitado não era nenhum santo, ou seria Rejeitado um santinho do pau oco?
Batata! [*] Deste dia em diante, sempre que Rejeição vinha em visita a Rejeitado, deparava-se com Medo latindo ferozmente no quintal, fugindo assustada; fugiam assustados também todos os demais que batiam à sua porta. Rejeitado ouvia feliz da vida os latidos do Medo, sabendo que agora estaria sempre seguro e mais confortável em sua casa interior, sem a inconveniente presença da insuportável Rejeição.
Passaram se os dias, os meses, os anos, Medo sempre latindo e afugentando Rejeição e os demais, até que depois de muito, muito tempo, Rejeitado se esqueceu completamente da Rejeição — que coisa mais doida! —, como se ela de fato jamais houvesse existido, passando a sentir-se bastante incomodado com os frequentes latidos do Medo, "por que late tanto este cachorro do inferno?", pensava Rejeitado profundamente aborrecido com aquela situação — teria Rejeitado comprado gato por lebre?
A frequente presença do Medo em sua casa emocional fez de sua vida um verdadeiro inferno, Medo era muito feroz, Rejeitado não mais conseguia se lembrar das origens do cão, e o feroz Medo fez de Rejeitado um prisioneiro em sua própria casa mental, de onde ele mesmo não saía, de tanto Medo, e onde ninguém entrava, de tanto Medo também. Vigiado constantemente pelo Medo, que se transformou em um cruel carcereiro, Rejeitado caiu em profundo e doloroso processo de depressão e isolamento social — Maldito Medo — pensava ele em meio a tantos outros pensamentos obscuros e muitos boletos para pagar também.
Num certo dia o telefone tocou e Rejeitado atendeu...
— Bom dia, com quem eu falo? — perguntou Rejeitado.
— Bom dia Rejeitado, aqui é sua vizinha do lado, a senhora Rejeição, consegue lembrar-se de mim?
Ao ouvir a voz do outro lado da linha Rejeitado tremeu da cabeça aos pés, seu coração disparou a ponto de quase sair pela boca, e sua voz quase se perdeu no interior de sua garganta. Tentou então recobrar o equilíbrio das emoções, e com profunda dificuldade respondeu dissimuladamente...
— Ah senhora Rejeição, consigo lembrar-me, a senhora sumiu, como tem passado ultimamente, e o que deseja?
— O Senhor está incomodando o meu cão! — exclamou a senhora Rejeição rispidamente.
— Não compreendi senhora Rejeição — respondeu o senhor Rejeitado.
— Senhor Rejeitado, somos adultos, sejamos francos, por favor. Você nunca suportou a minha presença, eu sempre soube disto, mas eu jamais conseguiria viver longe de você, sempre fui o seu mais oculto e obscuro sentimento, a dissimulada parasita fazendo de você o meu constante hospedeiro, sem você eu morreria senhor Rejeitado...
Rejeitado ouvia tudo calado, ele não tinha palavras para responder, sabia que era impossível mentir para a senhora Rejeição naquele instante. Seu desejo imediato era o de que caísse das alturas do céu um potente raio derrubando o sistema de telefonia global, mas o raio não caiu, era um dia ensolarado de céu de brigadeiro. A senhora Rejeição continuou falando na linha...
— Eu sempre soube que mais cedo ou mais tarde você me expulsaria de sua vida, e isto para mim seria insuportável, então eu tramei contra você senhor Rejeitado, chumbo trocado não dói, eu tramei contra você...
— Tramou contra mim? Como assim? O Medo te expulsou de minha porta e eu nunca mais vi a sua cara, como assim tramou contra mim senhora Rejeição? — gritou enraivecido com o rosto profundamente avermelhado, semblante carregado e com as veias aparecendo no pescoço o desconcertado senhor Rejeitado — o senhor Rejeitado levava tudo muito a sério.
— Senhor Rejeitado, o senhor sente saudades de sua cadelinha, a Coragem?
— O que tem a ver a Coragem com nossa conversa senhora Rejeição? E que conversa fiada é esta de eu estar incomodando o seu cão? Faça-me o favor! — respondeu transbordando de indignação o senhor Rejeitado.
— Senhor Rejeitado... se a sua cadelinha desaparecida, a Coragem, estivesse eu sua casa eu logo seria desmascarada e expulsa de sua vida, então eu troquei a sua querida Coragem — um furto numa noite escura — pelo meu cão de guarda, o Medo senhor Rejeitado; saiba que sua amada Coragem está acorrentada bem aqui do meu lado, já bem velhinha, diga-se de passagem, mas perfeitamente saudável ainda, enquanto o Medo late no seu quintal.
A pressão arterial do senhor Rejeitado subiu uma barbaridade naquele momento, por pouco, muito pouco o SAMU — Serviço de Atendimento Móvel de Urgência — não foi acionado, mas ele não enfartou e não morreu, seus profundos e longos momentos de peregrinação pelas trevas de seus depressivos poços calejaram bastante suas emoções.
— Que ato mais sórdido e vergonhoso senhora Rejeição, você sempre foi insuportável, podemos encerrar a ligação por aqui?
— Ainda não senhor Rejeitado, ainda não terminei... Sem sua Coragem as coisas ficariam mais fáceis para mim, mas ainda não era o suficiente, disseminei então pela vizinhança o boato de que eu tinha uma grande fobia por cães ferozes, você mordeu a isca como um patinho, e não demorou muito e chegou às suas mãos o meu cão de estimação, o Medo, adotado de pronto por você.
— Seu cão de estimação?
— Sim senhor Rejeição, o Medo é o meu amado e fiel cão de estimação, meu grande serviçal. Com a presença do Medo, que supostamente me afugentava de sua casa, ou melhor, de sua vida, e com a sua Coragem em meu poder, você foi esquecendo de minha existência, e desta forma magistral eu imperceptivelmente me instalei, tal como um vírus, não na sua casa física, mas no seu próprio mundo mental e emocional, seu mundo interior, sempre protegida pelo seu suposto guardião, o Medo senhor Rejeitado. Com o tempo o senhor passou a sentir somente Medo, muito Medo, e o Medo passou a ser o problema central de sua vida, e desta forma se esqueceu completamente de mim e nem conseguiu perceber que eu sempre estive todo o tempo bem ali do seu lado, bem juntinho feito Romeo e Julieta ou goiabada com queijo, que coisa mais linda, xeque mate senhor Rejeitado! — exclamou a Rejeição do outro lado da linha soltando uma sonora gargalhada e desligando abruptamente o telefone — se Rejeitado era muito inteligente, Rejeição era inteligentíssima.
O senhor Rejeitado ficou um longo tempo sentado onde estava, completamente atordoado com o fone ainda no seu ouvido. No quintal seu Medo corria atordoado de um lado para outro, latindo alucinadamente a torto e a direito feito uma fera louca — seria o Medo uma reencarnação de Cérbero, o mitológico cão de três cabeças que vigiava a entrada do reino subterrâneo dos mortos? — e, ao longe, muito ao longe, conseguiu ouvir o uivo sofrido e sentido, um profundo uivo de dor e saudade de sua Coragem, cruelmente aprisionada nas garras da senhora Rejeição. Mais cedo ou mais tarde o senhor Rejeitado precisaria enfrentar a senhora Rejeição e libertar sua Coragem e seu pleno estado de consciência, sem nenhum Medo correndo solto pelos quintal de suas emoções — um verdadeiro trabalho de Hércules.
Meu nome é Anônimo, Anônimo em recuperação! Pública é a minha codependência; eu sou maior que todas as minhas ilusões. Só por hoje serei feliz; só por hoje eu sou a pessoa mais importante da minha vida. Paz, serenidade e muitas 24 horas. Caso tenha gostado da mensagem, sinta-se a vontade para compartilhar com os demais.
[*] A expressão "BATATA" remonta à idade média e é popularmente utilizada quando algum evento tem a total possibilidade de acontecer.
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