A Felicidade Codependente


"Concedei-nos, Senhor, a Serenidade

necessária

para aceitar as coisas que não podemos

modificar,

Coragem para modificar aquelas que
podemos,

e Sabedoria para distinguir umas das
outras"



Ah... lá vem a minha felicidade, lá vem o caminhão vermelho despontando na curva da rua; perdoem-me, algum engano, a felicidade não chegou na boleia do caminhão do meu pai.

Mas agora a felicidade está finalmente ao alcance de minhas mãos; finalmente terminei o curso primário, amanhã coloco as mãos no meu primeiro canudo e, com a conquista merecida,  a felicidade estará presente, vida eterna ao dia de amanhã, o dia de minha primeira formatura. Não, ainda não, perdoem-me mais uma vez, minha felicidade não durou nem dois dias, dizem todos agora para mim — os próximos e os distante — que preciso passar no dificílimo exame de admissão ao ginásio, e vencido este obstáculo — creio que o último — eu certamente terei um longo período de felicidade naquele prédio bonito e envidraçado no alto da colina mais nobre da cidade onde moro.

Passei no exame de admissão, mas que estranho, a felicidade que senti durou menos que meus dias de férias de verão, findando logo nos primeiros dias em que pisei no moderno e bonito prédio do curso ginasial, provavelmente pelo fato de existir por lá alguns professores muito exigentes e rigorosos, possivelmente pela gama imensa de deveres para casa que preciso fazer semanalmente, mas a felicidade certamente chegará quando eu passar por este purgatório matutino e ingressar no segundo grau, é claro, aí está a resposta, passo por este inferno astral ginasial e mergulho de cabeça na felicidade que sentirei quando estiver cursando o segundo grau.

Segundo grau concluído e nada de felicidade, estou sentindo-me cada vez mais encurralado pela vida — seria eu apenas mais um boi limitado pelos humanos currais que permeiam a minha existência? —, mas seu eu passar no vestibular, será mesmo uma felicidade sideral naquela universidade federal a beira mar na metrópole dos cariocas, que beleza aquele campus, que beleza aquele mar azul de anil com aquelas pessoas tão sorridentes nas praias — seriam os cartões postais coloridos a morada da felicidade? —, é lá, é lá na federal que está a minha tão sonhada felicidade celestial, preciso apenas passar, passar no vestibular, ir embora de minha cidade e tomar posse — não como um grileiro de terras alheias —, de minha própria felicidade.

Socorro, socorro, já estou na federal mas a felicidade não veio, onde ela está, onde? Será que se perdeu nos trens da Central do Brasil? Será que está a deriva em alguma barca na Baia de Guanabara? Será que foi furtada por alguns destes batedores de carteira que andam por aqui? Está tudo do lado do avesso, estou dormindo mal, morando mal, comendo mal, vivendo mal, tudo um horror, o curso é um terror, vivo chorando escondido pelos corredores universitários de tanta dor — os depressivos codependentes costumam chorar ocultamente pelos cantos de sua escuridão —, acudam-me por favor, minha felicidade está perdida, socorro, socorro, estou sofrendo mais que a Baia de Guanabara, pobre e inocente receptora de todos os dejetos da grande metrópole — seria o meu codependente e depressivo poço o grande receptor de todos os meus esgotos mentais?

Oh glória, Mas é claro, é obvio que a felicidade está logo além deste calvário universitário, esta é a última etapa do pesadelo que leva ao meu sonho de ser feliz, a felicidade está logo além da formatura, já consigo vislumbrar o primeiro emprego, a independência financeira, a primeira promoção, a carreira brilhante, o primeiro carro, a namorada encantada — Branca de Neve, a Bela Adormecida, Rapunzel, Poliana, a Scheherazade das mil e uma noite, etc —, as viagens, a noiva, o casamento no castelo encantado — os codependentes costumam dormir com as belas e despertar com as feras —, os filhos, a casa com os cachorrinhos vira latas e as árvores...

Todos os eventos relatados ocorreram no tempo e no espaço, mas a felicidade, como eu a imaginei, jamais veio, pois minha felicidade sempre foi uma eterna e inatingível miragem criada pelo meu falso eu — meu velho ego —, uma felicidade que viria sempre com a concretização de um evento em um futuro próximo, ou mesmo distante, uma felicidade que de tão pensada acabou transformando-se em uma felicidade pesada e cansada, que coisa mais triste.

Minha felicidade exata — tal como em um modelo matemático — sempre foi uma felicidade imaginada e calculada, uma felicidade prensada nas forjas da minha mente, uma felicidade que sempre dependeu de algo ou alguém para acontecer, uma felicidade profunda e previamente analisada, uma felicidade doida — seria a minha felicidade uma questão de pesos e medidas?

Minha inalcançável felicidade sempre foi como ilhas sonhadas que eu um dia encontraria e tocaria com os meus pés, obviamente após  remar arduamente nas depressivas águas do meu interno oceano mental de dor e escuridão — a depressão, um subproduto da minha codependência, é como um vasto mar tempestuoso sem terra a vista.

Agora fica claro porque eu não encontrei a tão almejada felicidade, pois a felicidade é algo que se vive e sente, e não algo que se pensa e calcula, e como eu sempre fui um pensador compulsivo, na minha compulsão por tanto pensar, pensei mesmo que seria muito feliz, mas todos os frutos dos meus bens intencionados pensamentos mentais, verdadeiros mundos interiores, não passam de cinzas de um universo mental em ruínas que eu obstinadamente teimo em não abandonar, na vã tentativa de encontrar a minha felicidade através da minha faculdade de pensar — seria eu o próprio reitor da minha falida universidade racional, tentando o tempo todo formar um ser humano feliz através de fórmulas mentais? Até hoje nunca vi um autômato feliz.

Meu nome é Anônimo, Anônimo em recuperação! Pública é a minha codependência; eu sou maior que todas as minhas ilusões. Só por hoje serei feliz; só por hoje eu sou a pessoa mais importante da minha vida. Paz, serenidade e muitas 24 horas. Caso tenha gostado da mensagem, sinta-se a vontade para compartilhar com os demais.

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