Meus Botequins, Meu Ego, o Dilúvio e a Arca de Noé
"Concedei-nos, Senhor, a Serenidade
necessária
para aceitar as coisas que não podemos
modificar,
Coragem para modificar aquelas que
podemos,
e Sabedoria para distinguir umas das
outras"
Chovia uma barbaridade, chovia a cântaros naquela tarde de fevereiro do ano da graça de 2023; chovia tanto que parecia até a chuva do dilúvio do fim do mundo, mas como não vi a barca de Noé não me preocupei muito.
— Preciso beber, preciso fugir, fugir de mim e esquecer meu passado, fugir de mim e projetar um futuro grandioso, preciso beber, mas mesmo não bebendo preciso ir agora mesmo para um dos meus inúmeros e internos botequins mentais e emocionais — são muitos —, ou mesmo um botequim do mundo real, para então fugir numa conversa fiada; fugir num carteado; fugir num jogo de dominós; fugir assistindo a um jogo de futebol; fugir acompanhando uma série na televisão; fugir assistindo a uma infinidade de filmes; fugir falando dos outros; fugir para esquecer de mim; fugir para o mundo da fantasia e imaginação; fugir para os pensamentos mágicos de felicidade instantânea; fugir mentindo para mim e para os demais; fugir para ser feliz; fugir para encher o enorme vazio, fugir para... Preciso fugir para meu enorme botequim mundo emocional adentro, meu confortável botequim mental, preciso ir para lá agora e beber, mesmo não bebendo nada, pois adentrando meu botequim consigo, mesmo que supostamente sóbrio, mascarar meu vazio e meu tédio, consigo mesmo dar uma rasteira em meu profundo sentimento de rejeição, consigo, enfim, fugir da realidade que me assusta tanto tal como a ventania, os raios e trovões da grande tempestade de verão da tarde de hoje.
— Terminou de falar ego meu?
— Creio que sim, mas preciso urgentemente de uma fuga para um boteco mental e emocional, uma escapada para uma maravilhosa fantasia que me leve ao meu extraordinário país da paz e das fantasias, o que você acha?
— Ego meu, não quero mais fugir, não posso mais fugir, não consigo mais fingir, não posso mais entrar nestes enganosos e tóxicos botequins mundanos e mentais, sinto muito, mas não posso mais acompanhá-lo nesta jornada insana.
— Nossa... virou padre agora? Então para onde vou depois desta chuvarada toda? Não quero ler seus livros; não quero rezar suas orações; não quero ouvir suas músicas; não quero plantar suas árvores; não quero a companhia de seu vira lata pulguento; não quero abraçar seus amigos, quero simplesmente ficar quieto e a sós no meu canto com as portas fechadas ruminando, tal como um boi, meu passado, a fim de tentar encontrar a bendita saída deste labirinto sem fim do meu viver, já que, infelizmente, Noé não apareceu para levar-me em sua barca da salvação.
— Ah... gostei muito de sua criatividade em relação a Noé, mas nós vamos mesmo, e vamos agora para uma Sala de 12 Passos, pois lá poderemos beber da experiência de vida de outros companheiros, e partilhar com eles nossas próprias vivências, e ao final da reunião brindarmos todos juntos com nossas taças cheias de gratidão e alegria por estarmos simplesmente conseguindo viver um dia de cada vez, sem tentarmos inútil e insanamente controlar todo o universo ao nosso redor dentro ou fora de um botequim.
— Vai tirando o seu cavalinho da chuva, eu não vou, eu não vou! — exclamou meu velho ego batendo com os pés no chão, de cara amarrada, fazendo uma enorme birra na desesperada tentativa de impor a sua própria vontade, chegando mesmo a rolar no piso frio da cozinha. Apesar de velho, meu ego não passa de uma simples criança imatura e insegura, que no fundo deseja apenas amor, carinho, compreensão, muita disciplina e acolhimento. Peguei-a então no meu colo e coloquei-a no banquinho de criança no banco traseiro do automóvel, e juntos fomos para a reunião de 12 Passos, pois estávamos ambos muito sedentos, não das bebidas do mundo, mas tão somente de Deus, conforme O concebo. Alguns minutos depois de sair de casa, antes mesmo do cair da tarde e da chegada da noite, meu ego, ou melhor, minha criança interior, já estava adormecida no seu banquinho totalmente em paz, quem sabe sonhando com a chegada da arca de Noé e a salvação eterna.
Meu nome é Anônimo, Anônimo em recuperação! Pública é a minha codependência; eu sou maior que todas as minhas ilusões. Só por hoje serei feliz; só por hoje eu sou a pessoa mais importante da minha vida. Paz, serenidade e muitas 24 horas. Caso tenha gostado da mensagem, sinta-se a vontade para compartilhar com os demais.
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