O Saleiro, A Gata de Seda e a Gata de Chita

"Concedei-nos, Senhor, a Serenidade
necessária

para aceitar as coisas que não podemos

modificar,

Coragem para modificar aquelas que
podemos,

e Sabedoria para distinguir umas das
outras"



Prefácio... Doze horas em ponto; desço pelo elevador da elevada e elegante torre, e vou almoçar no restaurante natural, na Rua da Passagem em Botafogo; depois de comer as saladas fico aguardando o prato quente, e neste diminuto espaço de tempo fico observando o solitário saleiro em cima da mesa, e então chega à minha mente um dito popular: "Se você desejar um dia conhecer uma pessoa, compre um quilo de sal e more com ela, e quando o sal estiver pela metade você saberá muito a respeito dela". Existe muita sabedoria nos ditos populares, penso eu achando aquilo um pouco engraçado.

Senhor, Senhor... mande uma gata para mim, uma gata vestida de seda. Já tem uma gata Senhor, mas ela veste chita, é simples, inconstante, distante e costuma pisar com os pés descalços no chão. Não quero esta gata Senhor, deve existir uma gata maravilhosa, uma gata diferente, uma gata perfeita... Senhor, meu tempo está passando, já sou titio, já passei dos trinta, preciso da desconhecida gata vestida de seda para preencher o meu vazio; para realizar os meus sonhos de príncipe encantado com a princesa maravilhosa; para trazer sentido, paz e alegria ao meu viver; para apresentar para a mamãe; Senhor, Senhor, uma bela vestida de seda e não uma simplória devoradora de livros de medicina vestida de chita — os codependentes são muito criativos em suas orações.

Foram tantas as minhas orações, que um dia o Senhor da vida, conforme O concebo, resolveu finalmente realizar o meu tão desejado sonho de felicidade eterna — os codependentes adoram o viveram felizes para sempre. A gata de seda não apareceu ao anoitecer conforme eu imaginava, surgiu sob a luz do sol em um dia de expediente, quando fui almoçar no restaurante habitual — os codependentes são muito metódicos. Lá estava a nova garçonete, linda, linda demais... Ah, a nova garçonete passou pela minha mesa e sorriu para mim, que sorriso lindo, que garçonete bonita... Durante a refeição, entre um prato e outro, trocamos algumas poucas palavras e depois fui embora com a imagem daquela gata no pensamento, que gata mais linda, linda demais para mim, é muita areia para o meu caminhão, melhor deixar isto para lá, pensava eu caminhando pela Rua da Passagem — os codependentes costumam não acreditar na concretização de seus próprios sonhos.

Lá vou eu, como de costume, almoçar no restaurante de sempre — os codependentes costumam repetir com frequência os seus hábitos; chego no horário de sempre e me dirijo para a mesa de sempre, até aí tudo normal, mas eis que aparece novamente a linda gata do dia anterior, meu coração dispara, ela é linda demais. Sou novamente atendido por ela, que traz inicialmente o prato de saladas, depois o prato de sopa, depois o prato quente e finalmente a sobremesa, tudo isto acompanhado do maravilhoso sorriso, que sonho, que graça, que encanto... Hora de ir embora, preciso voltar para o escritório, mas não resisto desta vez, pego um guardanapo, pego uma caneta e escrevo com a mão levemente trêmula: Você é muita linda! A garçonete, ou melhor, a gata lê, olha para mim e retribui o gracejo com um olhar e um sorriso encantador, o sorriso de uma gata, uma belíssima gata, meu Deus do céu, creio que estou apaixonado, creio que estou amando e amarei para sempre esta gata encantadora — os codependentes ficam apaixonados mais rapidamente do que a velocidade da luz.

Vou para o escritório trabalhar... Ah, agora penso nela o tempo todo, ela olhou para mim, ela sorriu para mim, ela gostou do meu bilhetinho carinhoso... O tempo passa e a tarde vai chegando, não consigo deixar de pensar nela, não vejo a hora de voltar no restaurante no dia seguinte para vê-la novamente, que gata, que gata... Já estamos no dia seguinte, já voltei ao restaurante e convidei com o coração acelerado a gata para jantar, e a gata aceleradamente aceitou o convite, sugerindo um restaurante a luz de velas, que gata, que encanto, que criatividade, glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade, a vida é bela, o universo conspira ao meu favor — os codependentes são muito gratos a Deus quando seus sonhos são realizados.

O jantar foi ótimo, o restaurante era encantador e a gata, meu Deus do céu, a gata veio vestida de seda, que vestido lindo, que charme, que elegância, que perfume, que conversa, que mulher, aquilo tudo era um sonho, e na hora de ir embora a gata de seda não queria ir para a casa dela, que coisa mais encantadora, a gata de seda queria ir para a minha própria casa, e foi — os codependentes acreditam piamente naquele amor instantâneo que brota aos borbotões dos livros de contos de fadas. Dirigindo o carro em direção à minha casa, veio novamente à minha mente a imagem do saleiro e o dito popular, e mais uma vez eu achei tudo muito engraçado. 

Capítulo I, página 1, primeiros dias com a gata... tudo encantador e maravilhoso, com muitos jantares à luz de velas e alguns almoços em restaurantes distantes nos finais de semana — a gata de seda adora comer fora e beber bons vinhos, ela é muito sofisticada, que charme meu Deus, que charme. De tempos em tempos encosto a mão nela para verificar se ela de fato é real, é muita graça, é muita beleza, é muito encanto, glória, glória; o tempo vai passando, digo para a gata que gostaria muito de ficar em casa, quem sabe uma comidinha caseira... A gata de seda prepara uma deliciosa sopa de cebolas, nunca havia comido até então, que delícia a sopa de cebolas da gata, que encanto esta gata na cozinha, que coisa meu Deus, que coisa.

Capítulo I, página 2... Estou cansado de tanto sair para jantar fora, não aguento mais a luz das velas, mas se não vou jantar na rua, o prato de todas as noites é sopa de cebolas, e acabei de descobrir, a sopa é industrializada, não suporto nem mais o cheiro, creio que o inferno seja uma enorme cozinha cheirando a sopa de cebolas por toda a eternidade.

Capítulo I, página 3... A gata de Seda está sempre pedindo dinheiro, sempre dizendo que é uma injustiçada e que o salário dela é muito baixo, sempre pedindo dinheiro... Preciso ajudar a gata, vou doando dinheiro para gata quase todos os dias, vou salvar a gata de seda desta crise financeira sem fim, sem dinheiro ela fica um pouco amuada, um pouco triste, um pouco melancólica, um pouco irritada... — os codependentes apaixonados adoram salvar seus amores de todas as situações adversas da vida.

Capítulo I, página 4... A gata deseja muito um novo vestido, de seda, é claro, vou então com ela a um dos shoppings mais sofisticados da cidade — os codependentes apaixonados são muito solícitos. No shopping sofisticado a gata entra numa loja sofisticada também, tudo sofisticado, que sofisticação a minha gata... O que é isto meu Deus do céu, o que é isto? O vestido custou uma fortuna, uma parcela considerável do meu salário, e a gata ainda está meio bicuda e de cara amarrada, dizendo para mim que desejava um outro vestido muito mais caro, pelo andar da carruagem hoje dormirei sem aquela horrorosa sopa de cebolas do inferno, ou seria o inferno dormir após comer a medonha sopa de cebolas?

Capítulo I, página 5... A tinta de minha caneta acabou de tanto fazer cheques para a gata de seda, estou no vermelho no banco, estou mais duro do que um coco da Bahia de todos os Santos, e comecei a rezar agora para todos estes Santos para que afaste esta gata de mim, estou cansado de tudo isto, estou intoxicado de tanto comer cebolas, que gata é esta meu Deus, será que rezei errado, será que não fui claro em minhas orações, será que rezei em japonês medieval e não fui muito bem compreendido lá no céu distante? Meu Deus, meu Deus, pedi uma gata de seda, pedi uma pombinha meiga e agora tenho em casa uma ave de rapina perdulária e manipuladora — os fantasiosos sonhos dos codependentes muitas vezes transformam-se em reais pesadelos.

Capítulo I, página 6... Estou no trabalho em uma reunião; o telefone toca, a secretária avisa que é para mim, quem seria as 11:00 horas da manhã? "Alo, aqui é o seu primo... a sua gata chegou em casa meio esquisita, fechou a porta do quarto e ligou o som em uma altura descomunal... achei aquilo tudo muito estranho, bati na porta várias vezes e ela não abriu, então abri a porta; venha rápido, ela tomou uma caixa de comprimidos, ela tentou tirar a própria vida e agora estou com ela aqui no hospital". Saio da reunião rapidamente, corro para o carro, 100 quilômetros por hora no Aterro da Flamengo, 110 por hora na Avenida Perimetral, 120 por hora na ponte Rio Niterói, bati o recorde mundial da travessia da Baía de Guanabara, minha cabeça gira mais que o giro do motor, que horror tudo isto.

Capítulo I, página 7... Passei o dia no hospital até ao anoitecer, a gata de seda não partiu desta para a melhor, os médicos fizeram uma lavagem estomacal, a gata está salva, creio que nesta altura da crônica quem esteja morto sou eu. Olho para a mãe da gata ali presente, quanto sofrimento, quanta dor, quanto desamparo no olhar e no coração daquela criatura. A gata recebe alta e vai para a casa dos pais que fica em um bairro distante no Rio de Janeiro, levo as duas para lá numa viagem silenciosa e triste, aquilo mais parecia um funeral sem o féretro. O último olhar da pobre mãe para mim parecia dizer-me: "Você é a minha esperança, salve a minha filha!" Volto para casa de madrugada exausto, cansado, desanimado, ferido, magoado, revoltado... tomo um banho e depois olho o meu rosto no espelho e não acredito no que vejo: uma grande mexa de cabelos brancos surgiu na lateral de minha cabeça, envelheci 30 anos em um único dia.

Capítulo I, página 8... Dia seguinte, estou no trabalho, creio que nunca mais verei aquela gata infernal, melhor assim, Deus escreve certo por linhas tortas, que tragédia meu Deus do céu. Toca o meu ramal... "cidadão, tem uma pessoa esperando por você aqui na recepção". Quem seria naquela hora? Não estava esperando por ninguém. Vou até lá e não acredito no que vejo: A gata estava de volta, a gata que eu não queria ver nem pintada com todo o ouro do universo estava bem ali na minha frente. Minha vontade era mandá-la para os quintos dos infernos, mas como bom codependente e salvador de toda a humanidade, fiz uma cara de paisagem, sentei no sofá e conversei com ela. A gata me disse que foi aconselhada a sair da cidade, a fazer uma viagem bem longa e passar algum tempo fora a fim de colocar as ideias no lugar — que notícia maravilhosa, enfim. O local escolhido foi o Sul do Brasil, e como o Sul era bem distante, a gata precisava de algum dinheiro para fazer a longa viagem. Pensei rápido como um raio e achei a saída para o meu drama, os ventos começavam a soprar a favor — os codependentes são incorrigíveis —, o Sul era muito longe e desta forma eu estaria definitivamente livre dela, livre para sempre daquela gata doida. Fui até a agência bancária dentro da própria empresa, saquei todo o dinheiro que tinha na conta, um mês do meu salário, entreguei nas mãos da gata e disse para ela: Vá com Deus, passe uns tempos lá e vamos ver como ficam as coisas depois — os codependentes escondem suas emoções, mentem para si mesmos, mentem para os outros, mentem até mesmo para Deus e para o diabo.

Capítulo I, página 9... Minha paz durou menos de uma semana, quando a gata reapareceu em minha casa sem um centavo na bolsa; queria ver o diabo na minha frente e nunca mais olhar para a cara daquela mulher, mas mesmo assim abri a porta e permiti que ela entrasse novamente em minha vida — o diabo veste seda. Mas alguma coisa havia mudado em mim, eu já não era mais o mesmo, estava mais frio do que mármore de cemitério nas noites frias de inverno. A gata pedia dinheiro e eu dizia que não tinha; a gata desejava tirar carteira de motorista e dirigir o meu carro e eu dizia que não emprestaria de forma alguma; a gata me convidava para jantar fora e eu sistematicamente recusava o convite. Então, aos poucos a gata foi percebendo que minha paixão por ela havia acabado, a Inês era morta, e assim como ela apareceu num dia ensolarado de forma repentina, de forma repentina ela também desapareceu de minha vida e eu nunca mais a vi.

Capítulo II, página 1... Estou solitário em minha casa e completamente destroçado por dentro, tentando aos poucos juntar os meus próprios cacos; ando de um lado para o outro pensando em tudo o que aconteceu e tentando compreender porque Deus permitiu que eu passasse por tudo aquilo, tentando compreender porque Deus não enviou um sinal dos céus, sei lá, um raio, um trovão, uma pomba, papai noel, uma tromba d'água, um anjo, sei lá, qualquer coisa para alertar-me: "Meu filho, pule fora, você vai entrar na maior furada". Passo pela cozinha e observo meu pote de sal em cima da mesa praticamente intocado, as sopas de cebolas do últimos meses já vinham temperadas, e novamente vem à minha mente a imagem do saleiro e o adágio popular, e desta vez, enfim, eu não achei graça nenhuma. Ah... aí está a minha resposta, Deus não me abandonou em momento nenhum, Deus mandou o saleiro e o dito popular, fui alertado duas vezes e achei graça, que mancada, que soberba, que ingenuidade, que falta de respeito com o meu Criador — os codependentes negam sistematicamente a realidade, mas acreditam piamente na Mula Sem Cabeça, no Saci-Pererê, na Branca de Neve, no Peter Pan...

Vou até a varanda da sala e fico olhando o horizonte através fresta do campo de futebol do estádio Caio Martins, e então penso com profunda ternura na gata de chita com sua simplicidade, com seu sorriso, com sua naturalidade, com seus livros espiritualistas, com seus incensos perfumados, com seu olhar verde e profundo... Onde andará a gata de chita meu Deus do céu, onde andará? — os codependentes costumam valorizar tardiamente aquilo que perderam.

Epílogo... Tudo o que foi narrado aconteceu há trinta anos, e nesta insignificante fração de tempo diante da eternidade, muitas coisas aconteceram e infinitas ondas foram quebradas ao longo das praias mundo afora. Passo pela cozinha de minha casa, e ouvindo ao longe o canto amigo de inúmeros passarinhos empoleirados nas árvores do quintal, observo com contentamento e gratidão um pote de sal rosa e saboroso, um sal do himalaia, e o sal já está quase chegando ao fim. Provavelmente ao longo dos últimos trinta anos meu saleiro tenha sido esvaziado umas trinta vezes ou mais, e agora conheço com relativa profundidade a gata que ao longo deste período todo costumeiramente manipulou todo este sal, temperando nossas vidas com muita presença, amor, alegria e dignidade.

Dou mais alguns passos, chego no quintal e vejo no varal o vestido mais bonito do mundo — a alegria vive numa tal simplicidade que nem a mente mais brilhante do universo consegue forjar —o vestido da gata que gosta das flores, das pessoas, dos bichos, dos livros, dos doentes, dos sãos, da vida... é um simples vestido de chita com flores coloridas daquela gata, aquela gata que eu ilusória e temporariamente troquei — existe uma infinidade de ocultos espinhos no país das maravilhas criados pelas mentes codependentes — pela gata, aquela outra gata cuja seda escondia em suas entranhas unhas emocionais que tanto me feriram, unhas que se assemelhavam as unhas das chitas selvagens que habitam livremente as savanas africanas, chitas tão belas quanto minha gata vestida de chita.

Meu nome é Anônimo, Anônimo em recuperação! Pública é a minha codependência; eu sou maior que todas as minhas ilusões. Só por hoje serei feliz; só por hoje eu sou a pessoa mais importante da minha vida. Paz, serenidade e muitas 24 horas. Caso tenha gostado da mensagem, sinta-se a vontade para compartilhar com os demais.
 

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