Um Cafezinho com o Desconhecido Sentimento

"Concedei-nos, Senhor, a Serenidade
necessária

para aceitar as coisas que não podemos

modificar,

Coragem para modificar aquelas que
podemos,

e Sabedoria para distinguir umas das
outras"



O Viajante Emocional andava por aquele corredor imenso com um sem número de portas, tal como o corredor de um grande hotel. Em cada porta o nome de uma de algumas de suas emoções, portas que já haviam sido abertas em algum momento de sua longa jornada interior, familiares portas: Porta do Medo, porta da Angústia, porta do Ressentimento, porta da Raiva, porta da Indiferença, porta da Ansiedade, porta da Alegria, porta da Birra, porta da Solidão, porta da Amizade... dentre tantas outras portas mais.

Em determinado momento percebeu uma porta sem nenhuma inscrição de emoção, uma desconhecida porta emocional ainda não investigada, "que porta será esta? Certamente a de um sentimento ainda não revelado pela minha consciência", pensou ele enquanto abria a porta daquela ignota emoção.

— Bom dia, alguém aí? — Perguntou o Viajante Emocional.

— Ah... finalmente você chegou, estava achando que jamais seria encontrado por você — respondeu o sentimento.

— Quem é você?

— Sou o seu pior pesadelo, o alpha e o ômega de todo o seu sofrimento emocional.

— Ah, já sei, já sei... você é a minha Vergonha Tóxica.

— Ledo engano Viajante Emocional, a Vergonha Tóxica reside na porta 423 e já foi muitas vezes visitada por você.

— Então você é certamente a minha Angústia.

— Errou novamente, a Angústia reside na porta 127.

— Creio que seja então o meu perpétuo sentimento de Culpa.

— Sua Culpa é vizinha de sua Vergonha Tóxica e reside na porta 422, creio que você passará todo o dia tentando adivinhar quem eu sou e não descobrirá, saiba que desde a sua mais tenra infância até os dias de hoje você sempre prestou culto para mim, digamos que eu seja o seu onipresente Poder Inferior.

— Poder Inferior? Como assim? Confesso que não entendi.

— Você entenderá Viajante, você entenderá, vou ajudá-lo... Você sempre gostou de rezar, tem o hábito de acender velas para os Santos de sua devoção, gosta de momentos de solidão e silêncio a fim de meditar na sua vida, e apesar de tudo isto não sente toda a alegria desejada, como se seus ideais divinos estivem perdidos numa galáxia distante, certo?

— Infelizmente sim, mas onde você entra em tudo isto?

— Provavelmente entrei muito antes de você dar os seus primeiros passos Viajante, você nunca conseguiu sentir verdadeiramente o seu Deus; nunca consegui sentir alegria pelas velas acesas e nunca achou mesmo que os Santos pudessem trazer a paz que você sempre buscou, pois apesar de todos estes esforços, eu estive sempre presente e o seu sentir era minha própria presença, seu Deus do céu sempre foi mental, distante e racional, porém, eu sempre fui absolutamente real para você, seu constante rancor, sua amargura sem fim, seus sentimentos depressivos e sua angústia infinita sempre foram as mais cristalinas provas de sua devoção a mim, seu Poder Inferior; estou mentindo Viajante?

— Não, não está! Confirmo tudo o que você disse.

— Viajante, eu estava presente no seu desejo ardente de namorar as moças bonitas que passavam pelo seu caminho; presente no seu temor de falar com elas — você nunca falava com elas — e receber um não como resposta, você nunca suportou a ideia de ouvir um não, nunca suportou a possibilidade de dizer um não, o não para você é um grande tabu; estava presente naquelas solitárias noites quando você, de coração apertado, sofria tanto por simplesmente não conseguir sair com uma daquelas meninas, conversar um pouco e assistir a um bom filme no cinema; confirma o que estou dizendo Viajante?

— Confirmo tudo Poder Inferior — respondeu o Viajante Emocional com o seu coração raiado de dor.

— Viajante, sua baixo Autoestima, sua constante Insegurança, sua Culpa, sua Vergonha Tóxica e sua Negatividade crônica são algumas de suas mais profundas formas de culto a mim, pois o Deus do seu coração não passa de um inquilino eventual, quem vive no seu coração diuturnamente sou eu Viajante Emocional, estou sendo claro e honesto?

— Muito honesto... certamente você é o meu sentimento de Medo! 

— Não sou o seu Medo Viajante... seu Medo, seu Vazio, sua medonha Vergonha Tóxica e sua Angústia sem começo, sem fim, sem pé e sem cabeça são alguns dos seus sentimentos que servem a mim, e foram por muito tempo utilizados como sinais de fumaça a fim de que você não descobrisse a minha porta.  Tentei enganá-lo até mesmo me camuflando como o seu Orgulho, mas através de sua corajosa e determinada busca, você finalmente me encontrou e cá estamos frente a frente. Estou presente na sua necessidade infinita de agradar a todos ao seu redor; presente no seu olhar que raramente olha nos olhos dos outros; presente no seu clássico "o que eles vão pensar de mim?"; presente no seu padrão de não pertencimento ao mundo; presente no seu desejo de jamais ser percebido pelos demais...

Presente no seu fundo de poço; na sua caverna escura; na sua depressão; nos seus horizontes murados; nos seus túneis sem luz e sem saída; no seu desânimo; no seu cansaço pela eterna sensação de arrastar pesadas correntes; no seu desejo de desaparecer como pó na imensidão do universo; presente no seu sentimento de inadequação, na sua baixa auto estima...

Viajante Emocional... sou onipresente na sua vida, sou o seu próprio deus, o deus que você verdadeiramente sente e não o Deus pelo qual você tanto anseia, sou o deus do seu mundo mental desajustado, o deus de todos os seus negativos sentimentos, sou o carcereiro de sua depressiva caverna e o ilusionista do labirinto de onde você não consegue sair, sou eu o construtor dos seus eternos muros, sou eu o representante legal e o Senhor absoluto de todos os sentimentos negativos que você observou corredor afora: Medo, Angústia, Ansiedade, Vazio, Vergonha Tóxica, Culpa, Raiva Congelada... Já consegue perceber quem  sou eu Viajante Emocional? — questionou o Poder Inferior enquanto esquentava água para preparar um café para ambos.

— Você é a natureza exata de minha doença emocional!

— A natureza exata de sua doença é relativa Viajante, ela varia conforme o seu processo de recuperação e possui várias faces, mas minha face é única — respondeu o Poder Inferior enquanto passava o café cujo aroma inundava todo o ambiente.

— Ah Poder Inferior... o eterno Medo que sinto é um mecanismo de defesa, um mecanismo de fuga para não entrar em contato com a realidade, um perpétuo escudo protetor que utilizo quando estou em contato com os outros, pois os outros, quando contrariados, podem ferir-me, podem desprezar-me, podem castigar-me e eu já fui ferido, desprezado e castigado e isto doeu muito, portanto eu não quero nunca mais sentir isto, de tão profunda que foi a minha dor.

O café estava pronto; o Poder Inferior ofereceu uma xícara para o Viajante enquanto tomava a sua... 

— E para não sentir a sua profunda dor... — falou o Poder Inferior.

— Para não sentir minha profunda dor eu tento rejeitar tudo o que está além de minhas fronteiras, criando uma cidadela mental protegida e isolada da realidade.

— E quanto mais você rejeita... — comentou novamente o Poder Inferior degustando vagarosamente o seu café.

— Quanto mais eu rejeito o mundo mais eu sinto a externa e dolorida rejeição, quanto mais eu fujo das pessoas mais eu me aproximo da externa e incômoda rejeição, como se esta externa rejeição fosse totalmente onipresente em minha vida — concluiu o Viajante Emocional sorvendo o primeiro gole do seu café, e neste instante, olhou pela primeira vez de forma absolutamente destemida, profunda e direta nos olhos do Poder Inferior ali na sua frente, e através do brilho de seu próprio olhar descobriu, enfim, a identidade de sua desconhecida emoção.

— Nada como um bom cafezinho Viajante Emocional, caiu o véu de sua ilusão, sinta-se a vontade para dizer o meu nome.

— Você é a minha mais profunda e interna auto Rejeição.

— E agora Viajante Emocional, e agora?

— Agora vou para a prática do Sexto Passo: "Prontificamo-nos inteiramente para deixar que Deus removesse todos estes defeitos de caráter", e em seguida  "Humildemente rogar a Deus que me liberte destas imperfeições", conforme a sugestão do Sétimo Passo.

O Poder Inferior pegou uma placa onde estava escrito Rejeição e a entregou para o Viajante Emocional.

— Ao sair, por favor, coloque esta placa do lado de fora de minha porta e volte sempre que desejar tomar um cafezinho e bater um papo, a porta de agora em diante estará sempre aberta e você não precisa mais sentir nenhum temor em entrar, somos agora velhos conhecidos. Uma última coisa Viajante Emocional: É de suma importância que você consiga, de fato, praticar honestamente o Terceiro Passo e realizar a entrega ao Poder Superior conforme você o concebe, caso contrário, eu ainda continuarei desonestamente sendo de fato o seu verdadeiro poder, o seu Poder Inferior, o grande usurpador de todos os seus sonhos de realização e felicidade. Fui claro?

— Tão claro quanto a luz solar; gratidão pela conversa e pelo café Rejeição, tudo de bom para você — falou o Viajante Emocional dirigindo-se à porta.

— É só por hoje Viajante Emocional, vá em paz e procure viver sempre um dia de cada vez, preferencialmente sempre longe de minha nociva presença — respondeu a Rejeição enquanto lavava as xícaras do café.

Meu nome é Anônimo, Anônimo em recuperação! Pública é a minha codependência; eu sou maior que todas as minhas ilusões. Só por hoje serei feliz; só por hoje eu sou a pessoa mais importante da minha vida. Paz, serenidade e muitas 24 horas. Caso tenha gostado da mensagem, sinta-se a vontade para compartilhar com os demais.

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