Fiel Escudeira, Que Deus me livre e Guarde de Você

"Concedei-nos, Senhor, a Serenidade
necessária

para aceitar as coisas que não podemos

modificar,

Coragem para modificar aquelas que
podemos,

e Sabedoria para distinguir umas das
outras"



O Viajante Emocional entrou no carro; sua Fiel e inseparável Escudeira já estava, como sempre, ali ao seu lado no banco do carona. Mal o carro começou a circular e ela começou a ditar as regras do dia no ouvido dele, como costumava fazer cotidianamente desde os primórdios tempos de sua infância...

— Viajante Emocional, sem muitas novidades para o dia de hoje, vamos continuar mantendo o nosso protocolo de funcionamento, estamos indo muito bem, obrigada. Nada de dizer não para as pessoas, nada de não... Continue baixando a cabeça e dizendo sim, ou melhor, sim senhor, alguma dúvida?

— Não... ou melhor, sim, sim, farei isto conforme suas recomendações desde os tempos em que eu usava fraldas.

— Você não faz mais do que sua obrigação para comigo... Suas máscaras para o dia de hoje estão por aí? Mascara da vergonha, da culpa, do ressentimento, da raiva, do sorriso de faz de contas, da autopiedade, do Peter Pan na terra do nunca, da cara de paisagem, etc, etc, etc.

— Sem a menor sombra de dúvidas, quando levanto da cama já deixo todas elas separadas no criado mudo a fim de não esquecer.

— Continue assim, continue mudo como o criado e não terá nenhum problema comigo! Ah... escute bem, não quero você olhando nos olhos de ninguém, quando alguém olhar para você, faça-me o favor de desviar o olhar, olhe para o céu, para a lua, para o norte ou para sul, para Marte ou até mesmo para o inferno, olhe para qualquer lugar, mas jamais olhe nos olhos dos outros, estamos compreendidos?

— Sim Fiel Escudeira.

— Olhe o respeito Viajante Emocional, olhe o respeito...

— Sim Senhora Fiel Escudeira, Sim Senhora...

— Melhor assim, coloque-se sempre no seu lugar quando estiver em minha companhia, respeito é bom e eu gosto. Trouxe o capacho?

— Sim, está sobre o banco de trás.

— Ótimo; se alguém for grosseiro com você, ou tentar enganá-lo de alguma forma, sinta-se como um capacho e permita qualquer coisa, lembre-se que desta forma você será salvo e viverá feliz para sempre no reino dos céus, compreendido?

— Sim Senhora Fiel Escudeira.

— Se um anônimo qualquer invadir seu quintal emocional e falar poucas e boas com você, se te der conselhos e apontar caminhos para a sua felicidade, se gritar com você, ou apontar o dedo, ou olhar de forma dura, etc... faça me o favor de usar o capacho, fazer cara de paisagem, engolir todos os sapos e seguir adiante, porém, se tudo isto incomodar muito a você, passe em um templo de sua preferência, e, faça algumas orações pedindo ao seus deuses que fortaleça os teus ombros, a fim de que você suporte todos os malucos do mundo falando asneiras e outras coisas mais em seus ouvidos, estamos conversados?

— Sim, estamos conversados minha Senhora Fiel Escudeira.

— Ah... e antes que eu me esqueça: Mantenha sempre ao alcance de suas mãos o "padrão do agradador", agrade a todos a fim de ser feliz e amado, e estimado, e querido, e abençoado, e admirado por todos, e também o "padrão do salvador do mundo", salve todos os infelizes, pague as contas deles, ouça o rosário de lamúria deles, permita que eles te façam de gato e sapato furado, salve-os de suas misérias morais, pois desta forma, longa e eterna será sua estada no céu, onde você, enfim, viverá feliz para sempre, alguma dúvida Viajante Emocional, alguma dúvida?

Enquanto o carro circulava, a Fiel Escudeira continuava com seu rol de limitantes e degradantes regras de conduta para o Viajante Emocional, mas alguma coisa estava acontecendo — finalmente — pois o sangue do Viajante Emocional estava fervendo e seu coração disparado, ele não estava aguentando mais aquela diária e ultrajante ladainha do inferno proferida ininterruptamente por mais de cinquenta anos  — um dia é da caça e o outro do caçador.

— Fiel Escudeira, estou frequentando reuniões de 12 Passos faz algumas 24 horas...

— Senhora Escudeira, por favor... O que eu tenho com isto, não estou minimamente interessada nestas reuniões, exijo apenas que você cumpra as normas de sempre.

— Fiel Escudeira, lá tem Sexto Passo que diz "Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus remova todos estes defeitos de caráter".

— Senhora Escudeira! Está ficando surdo? já falei para você inúmeras vezes — respondeu a Fiel Escudeira um pouco descontrolada e com o semblante levemente avermelhado. Para o inferno com este tal de Sexto Passo, para os confins do universo com os demais Passos, isto não é problema meu, recolha-se à sua insignificância e vamos mudar de conversa.

— Não vou mudar de conversa coisíssima nenhuma — respondeu o Viajante Emocional olhando bem nos fundos dos olhos de sua Fiel Escudeira. Isto é sim um problema meu e você é para mim um indesejável e degradante defeito de caráter.

— Como se atreve a olhar para mim diretamente nos olhos Viajante Emocional, como se atreve?

O carro circulava, começava a chover e o coração do Viajante Emocional girava mais que o giro do motor do seu automóvel, mas ele sustentou a conversa e foi muito mais além. Ligou o rádio e sintonizou numa estação onde tocava uma música da Rita Lee, e o final da letra dizia "Deus me perdoe por querer, que Deus me livre e guarde de você", e terminada a canção ele olhou novamente nos olhos de sua Fiel Escudeira, sorriu para ela e cantarolou: Que Deus me livre e guarde de você Fiel Escudeira dos quintos dos infernos, que Deus me livre de sua praga.

Aquilo foi a gota d'água, sua Fiel Escudeira quase surtou de tanta raiva, gritou, babou, cuspiu, bateu os pés no chão, despenteou os cabelos, ficou mesmo possessa de tanta indignação pela petulante conduta do Viajante Emocional, aquilo era um ultraje, ela jamais havia sido tratada daquela forma por ele, precisava rapidamente controlar novamente as rédeas da situação antes que a vaca fosse definitivamente para o brejo.

— Cale a sua boca Viajante Emocional, caso contrário vou descarregar em você toda a vergonha tóxica do universo, vou transformá-lo nas fezes da pata traseira esquerda do cavalo do bandido, vou fazer você sentir a necessidade de cavar um imenso buraco e cair lá dentro por toda a eternidade, a fim de tentar inutilmente fugir de suas próprias dores interiores, cale a sua boca agora Viajante Emocional!

— Cale a boca já morreu, que Deus me livre e guarde de você Fiel Escudeira — tornou a falar o Viajante Emocional enquanto parava o veículo sob aquela intensa chuva na esquina do nada com lugar nenhum.

— Por que parou o seu maldito carro neste fim de mundo seu insubordinado, por acaso vai descer e sair correndo de mim? Pelo visto suas fraldas devem estar cheias seu medroso e submisso crônico.

— Quem vai descer do carro é você, sua fedorenta descarada,  fora!

— Como ousas? Será que ouvi direito o que você falou seu atrevido?

— Vou repetir para você em alto e bom som: Saia do meu carro agora! — retrucou o Viajante Emocional com uma determinação e um olhar profundo e firme que sua Fiel Escudeira jamais havia visto.

— Mas está chovendo muito Viajante Emocional, que tal esfriamos a cabeça e tentarmos novamente acertar os ponteiros, nossa convivência sempre foi desprovida de conflitos  tentou temporizar a Fiel Escudeira.

— Desprovida de externos conflitos e cheia de terríveis guerras interiores em mim Fiel Escudeira, saiba de agora em diante que quem engole sapos indefinidamente é cobra gorda, fora, fora, fora!

Com o semblante mais horrendo do que o retrato de Dorian Gray no final do livro, a Fiel Escudeira com sua petulante autoridade profundamente arranhada saiu do veículo, pisando duro e soltando impropérios, pragas e desgraças para todos os quatro cantos do mundo. Mas ela ainda tinha uma última carta na manga, nem tudo estava perdido, resolveu então dar a "carteirada" final:

— Viajante Emocional, você sabe com quem está falando?

— Sei sim — respondeu ele olhando lateralmente para a janela do carona, e fechando a porta em seguida —, estou falando com a megera de minha Rejeição.

— Você me paga Viajante Emocional, isto não vai ficar assim, você me paga! — exclamou a Rejeição já um tanto o quanto molhada pela chuva.

O Viajante Emocional sabia que ela voltaria mais cedo ou mais tarde, ela sabia muito bem onde ficava sua residência emocional; ligou o seu carro e seguiu adiante; dando uma última olhada pelo retrovisor conseguiu ainda ouvir através dos gritos dela suas frequentes crenças limitantes com relação a ele: Viajante Emocional, você é um João Ninguém, você é um bosta n'água, você é uma besta quadrada, você é um burro, você é um banana, você é inferior a todos os demais, você é o pó mais imundo e insignificante do universo, você me paga Viajante Emocional, Você me paga...

Depois de avançar e virar numa curva ela finalmente desapareceu do seu retrovisor, e então novamente ele cantarolou para si mesmo com todas a forças do seu coração o trecho da música da Rita Lee [Reza]: "Deus me acompanhe, Deus me ampare, Deus me levante, Deus me de força, Deus me perdoe por querer, que Deus me livre e guarde de você".

Meu nome é Anônimo, Anônimo em recuperação! Pública é a minha codependência; eu sou maior que todas as minhas ilusões. Só por hoje serei feliz; só por hoje eu sou a pessoa mais importante da minha vida. Paz, serenidade e muitas 24 horas. Caso tenha gostado da mensagem, sinta-se a vontade para compartilhar com os demais.

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