A Eterna Viuvez Codependente

"Concedei-nos, Senhor, a Serenidade
necessária

para aceitar as coisas que não podemos

modificar,

Coragem para modificar aquelas que
podemos,

e Sabedoria para distinguir umas das
outras"



O Viajante Emocional caminhava pela floresta; seus pensamentos estavam longe, e naquele momento o que ele menos queria era encontrar a Sábia Coruja, a voz de sua própria consciência. Mas como dizem os mulçumanos, "se Maomé não vai a montanha, a montanha vai a Maomé", e pouco tempo depois sua amiga já estava empoleirada num galho próximo, bem pertinho a ele.

— Bom dia Viajante Emocional; pelo visto você está evitando-me no dia de hoje, por que este acabrunhamento todo meu amigo?

— Deixe para lá Coruja...

— Os codependentes, na sua grande maioria, possuem o estranho hábito de não expressarem suas emoções Viajante Emocional, preferindo muitas vezes sepultá-las em seus depressivos poços, ou ainda, escondê-las em seus labirintos emocionais sem saída, sem começo e sem fim.

— A Inês é morta Sábia Coruja, a Inês é morta, e a amada está de fato sepultada... — lamentou o Viajante Emocional.

— Quem é a sua Inês sepultada Viajante Emocional? Creio que não seja a Inês do dito popular histórico.

— De fato não é a famosa Inês Coruja; quem morreu foi o segundo grande amor do meu passado, uma vizinha da casa dos meus pais nos idos tempos da minha juventude, uma moça muito linda, e eu gostaria muito de ter me casado com ela para ser feliz para sempre e além.

— Um amor verdadeiro vivido de forma efetiva Viajante Emocional, ou um destes seus amores codependentes que somente ocorrem no seu mundo mental e emocional?

— Um amor bem escondidinho dentro do meu coração e jamais revelado a ela e a mais ninguém Sábia Coruja.

— Ah Viajante Emocional, então neste momento você está vivendo o seu luto e sua viuvez pela amada com quem você nunca conviveu.

— Isto Coruja Emocional, mas minha dor é real

— Não estou dizendo que não é Viajante... Você agora está amargurado na sua viuvez mental, uma viuvez por uma mulher que, apesar de real, foi em sua vida somente mental; você nunca tocou nela; quase nunca falou com ela; nunca olhou diretamente nos olhos dela; nunca a convidou para tomar um café e assistir a um filme no cinema; nunca caminhou um único passo ao lado dela, apenas imaginou até a exaustão mental que ela era a cinderela de sua vida e poderia fazê-lo feliz para sempre, e agora, agora ela morreu e você está mentalmente viúvo dela, nada como uma viuvez platônica para um amor platônico — os codependentes são hábeis criadores de pensamentos mágicos.

— Sábia Coruja, você não está respeitando a minha dor!

— Não estou aqui para enganá-lo e nem passar a mão na sua cabeça Viajante Emocional; não espere comiseração de minha parte pela sua doentia autopiedade. Gostaria de continuar nossa conversa ou eu posso voltar para o alto de minha árvore?

— Você tem razão Sábia Coruja... admito que dei uma escorregada na casca da minha banana emocional e acabei adentrando meu fabuloso, fantasioso e infantil mundo mental deixando de lado a realidade, repetindo desta forma um de meus inúmeros padrões de codependência  os codependentes são grandes arquitetos de mundos de faz de contas.

— Não nego a sua dor Viajante... Diga para mim o que dói mais na sua alma, se os sonhos de ventura que nunca foram vividos, ou se sua paralisia total no passado em nem tentar cativar o coração da suposta mulher amada?

— Dói mais o fato de nunca ter tentado Sábia Coruja, é como se o meu passado fosse um enorme queijo suíço cheio de buracos, ou melhor, cheio de vazios não vividos. A impressão que sinto agora, é a de que a vida está enviando para mim a conta por todos estes vácuos de vida criados pela minha própria inércia.

— Viajante Emocional, segundo suas próprias palavras, sua falecida amada imaginária, creio que o seu segundo grande amor, faria de você o ser humano mais feliz do mundo, daí o motivo de seu codependente luto e da sua presente dor. Mas você possuía outros amores codependentes e platônicos como este, certo?

— Certíssimo Sábia Coruja.

— Sim... Você viveria feliz para sempre com aquela moça ruiva e de baixa estatura que trabalhava no hospital, o terceiro grande amor de sua vida; seria o maior felizardo do mundo se tivesse desposado aquela loira sorridente que vivia na terra dos cafezais, o primeiro amor de sua vida; seria o queridinho de Deus se tivesse se casado com aquela boliviana que encantava o seu coração nos tempos da universidade, o quarto amor de sua vida; se sentiria eternamente no paraíso cristão se tivesse namorado e vivido longamente com aquela encantadora, elegante e perfumada garota do Grajaú na cidade do Rio de Janeiro, nos seus tempos de estagiário, o quinto maior amor de sua vida; estaria para sempre no olimpo, na presença de todos os deuses gregos, se tivesse desposado aquela estagiária de Minas Gerais, aquela de olhar entristecido, sua colega no seu primeiro emprego, o sexto maior amor de sua vida; trocaria todos os amores anteriores pelo sétimo amor, aquela moça simplesmente maravilhosa que morava no Bairro dos Cajueiros e que, de tão linda, você considerava a terceira mulher mais bela do mundo, a primeira era a atriz americana Aldrey Hepburn, e a segunda era o primeiro grande amor de sua vida, a moça sorridente da terra dos cafezais no estado do Espírito Santo; e ainda o seu nono amor, aquela...

— Não precisa continuar Sábia Coruja, do contrário nossa prosa não terá fim.

— Viajante Emocional, com quais destas mulheres todas você externou os seus sentimentos?

— Com nenhuma delas Coruja Emocional, a situação é análoga ao segundo grande amor de minha vida, a mulher pela qual vivo o meu presente e codependente luto.

— Viajante Emocional, você teria que construir um harém para abrigar todos estas suas princesas onde, infantilmente, você seria o príncipe encantado, isto já passou pela sua cabeça, ou cada uma de suas futuras e maravilhosas esposas viveriam em lares separados e você ficaria circulando de casa em casa a fim de visitá-las cotidianamente?

— No meu imaginário mundo todas elas viveriam em paz na minha companhia, confesso para você que mentalmente sempre existiu um grande harém mental cheio de fontes, árvores e belíssimos jardins para abrigar todos estes meus grandes amores.

— E sem sombra de dúvidas que jamais haveriam conflitos existenciais entre vocês, um lugar abençoado e sem gritos; sem ausências; sem pessoas mal humoradas; sem pessoas de cara amarrada; sem choros silenciosos atrás das portas; sem olhares cortantes e acusadores; sem obrigações do mundo; sem segredos familiares trancados a sete chaves; sem dores generalizadas... e tudo isto gerenciado por você, o grande sultão das arábias, estou correto Viajante Emocional?

— Acertou na mosca Sábia Coruja!

— Viajante Emocional, pelo andar da carruagem você viverá ainda muitos lutos, numa eterna viuvez codependente, pois longa é a lista dos amores com alvarás de soltura para a sua vida.

— Amores com alvarás de soltura?

— Sim Viajante Emocional... amores para libertar você do seu grande vazio e de sua mais profunda e antiga carência.

— A carência do amor de minha mãe, que vivia muito ocupada a fim de cuidar de sua grande prole Coruja Emocional?

— Sua mãe era profundamente amorosa, e mesmo com todas as dificuldades, atribulações e deveres diários, doava sempre do seu amor, que brotava como uma inesgotável cascata do seu próprio coração. Você recebeu muito deste amor Viajante Emocional.

— De onde vem então minha carência Sábia Coruja?

— Sua carência vem do abundante, negado e trancafiado amor que habita em você,  o único sentimento do universo capaz de preencher o seu grande vazio de ser e existir, amor submerso em grandes jazidas dentro do seu coração, tal como os grande lençóis petrolíferos das terras dos sultões das arábias. 

— Como posso então entrar em contato com este amor que é meu Sábia Coruja?

— Basta pegar de volta a chave e abrir as portas do seu coração para a plenitude da vida.

— E por onde anda esta chave Sábia Coruja Emocional?

— Você, faz muitas 24 horas, deixou esta valiosa chave nas mãos do seu profundo sentimento de Rejeição; vá até ele e pegue a chave do seu coração de volta — respondeu a Sábia Coruja alçando voo em direção as altas árvores da floresta.

— Mas Sábia Coruja... 

— Nada de mas, nada de porém, nada de todavia Viajante Emocional, na oração da serenidade está escrito "coragem para modificar aquelas que posso", passe bem meu corajoso amigo — respondeu a Sábia Coruja antes de desaparecer definitivamente sobre a copa das árvores da floresta.

O Viajante Emocional perambulou um pouco ainda pela floresta; além do luto pela amada, além da preocupação por todos os lutos que ainda viriam, havia também agora a preocupação com aquela questão da chave, como ele poderia pedir a chave do seu coração de volta para a sua Rejeição, ela certamente não gostaria nem um pouco desta ideia, e novamente ecoou em seus ouvidos as últimas palavras de sua alada amiga: "Coragem para modificar aquelas que posso" — a codependência não é um conto de fadas das mil e uma noites das terras arenosas dos haréns dos sultões.

Meu nome é Anônimo, Anônimo em recuperação! Pública é a minha codependência; eu sou maior que todas as minhas ilusões. Só por hoje serei feliz; só por hoje eu sou a pessoa mais importante da minha vida. Paz, serenidade e muitas 24 horas. Caso tenha gostado da mensagem, sinta-se a vontade para compartilhar com os demais.

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