A Graça de Dois Reais

"Concedei-nos, Senhor, a Serenidade
necessária
para aceitar as coisas que não podemos
modificar,
Coragem para modificar aquelas que
podemos,
e Sabedoria para distinguir umas das
outras"

Seja muito bem-vindo ao blog; Benvindo é meu sobrenome, Anônimo é o meu nome e pública é a minha codependencia e a minha gratidão.

O que vou relatar agora ocorreu ocorreu há muito tempo, no apagar das luzes do século vinte; por aqueles dias eu já havia realizado boa parte de meus sonhos, e estava absolutamente cansado de trabalhar de maneira formal em qualquer empresa — já havia passado por muitas —, tendo todo o meu dia regrado por horários programados. Faltava então mais um sonho, o grande sonho: Desenvolver um grande programa de computador e vendê-lo, a fim de ganhar muito dinheiro e, não ter mais que ir para escritórios e submeter-me a tirania de tantos gerentes desagradáveis — alguns codependentes não suportam autoridades

Havia conversado com algumas pessoas sobre aquele desejo, até que ouvi do gerente da empresa onde prestava serviço, da necessidade de um software com determinadas especificações que poderia auxiliá-lo, bem como a tantos outros, no processo diário de gerenciamento e controle de um sem número de processos. Conversamos muito a respeito daquele assunto, e em determinado dia eu disse para ele que sentia-me capaz de desenvolver aquela ferramenta. Os olhos do gerente brilharam de empolgação, e ainda ouço até os dias de hoje aquela voz: "Rapaz, venderemos este produto para todo o Brasil; venderemos para toda a América Latina". Eu não precisava ouvir mais nada; resolvi então, com o aval pessoal dele, que desenvolveria aquele produto — codependentes vivem em universos paralelos, onde, sem nenhum questionamento, tudo funciona com a mais perfeita magia da imaginação. 

Desci então do codependente e mágico mundo paralelo, para a dura realidade dos mortais, e comecei a fundir o meu grande sonho em linhas de código de programas de computador, trabalhando freneticamente — codependentes são trabalhadores por excelência. Acordava todos os dias bem cedo, e bem cedo dirigia-me ao computador, passando por lá longas horas. Eu estava seguro, havia um bom dinheiro na conta bancária; haviam dois filhos; havia minha esposa; havia ainda um pouco de minha juventude e ainda muita força interior; havia também o fundamental: A promessa daquele gerente falante e agradável  que homem extraordinário!; eu estava seguro, nada poderia dar errado, tudo dependia tão somente do meu próprio esforço  — uma verdadeira barbada".


O tempo avançou; continuei trabalhando em casa com a disciplina de um espartano; de vez em quando ligava para o gerente lá no seu escritório, naquela grande e sólida empresa na capital paulista e, então falávamos sobre o andamento de tudo aquilo; ouvia dele algumas sugestões, trocávamos algumas ideias, e eu então, cheio de esperança continuava o meu trabalho no meu escritório caseiro, até que, alguns meses depois, o projeto estava praticamente concluído. 

Liguei feliz da vida para promotor da minha ideia, e agendamos uma reunião para a semana seguinte, quando ele viria à minha cidade visitar uma das muitas indústrias do grande grupo empresarial onde trabalhava; eu estava finalmente muito próximo da realização do meu sonho — codependentes sonham em demasia

Chegou finalmente o grande dia. Marcamos a demonstração do produto para as 18 horas — achei um pouco tarde. Aquilo seria uma grande festa; cada detalhe do que ele sugeriu eu havia feito, aquele programa havia consumido meses de trabalho de minha vida; consumiu todas as minhas economias — eu ainda não conhecia a expressão "reserva prudente" — mas, era algo bom, muito bom, e eu tinha a mais absoluta convicção que seria mais vendido que picolé na praia em um dia ensolarado de verão  conseguia sentir o vento marinho tocando mansamente em meu rosto. Faltava só um pouquinho para a independência financeira, uma simples demonstração de tudo o que havia construído, e depois a glória, que preencheria por toda a eternidade o vazio que habitava dentro de mim. 

Cheguei na empresa bem antes da hora marcada, preparei tudo, e fiquei aguardando meu grande amigo, aquele gerente descendente de italiano, aquele gerente tão falante e tão agradável. Quando ele finalmente apareceu, a hora já havia avançado bastante — o tempo não para. Percebi que ele estava muito cansado depois de um dia exaustivo de trabalho; falei um pouco sobre o projeto e então comecei a demonstração para ele. Apenas com o olhar eu percebia que ele estava distante — codependentes possuem um alto grau de percepção emocional —, e ainda com o olhar, alguns minutos depois, eu constatei que o promotor de meus sonhos estava cochilando — o sonho era meu, mas quem dormia era ele

Enquanto eu fazia a apresentação de minha vida, entre uma cochilada e outra ele fazia algumas colocações vagas, até que finalmente terminei; as cartas estavam todas na mesa. Fiquei aguardando que ele se manifestasse, mas de certa forma eu já sabia que havia dado com os burros n'água. Naquele momento decisivo ele foi completamente evasivo, dizendo-me que voltaria para São Paulo no dia seguinte, e que aquele projeto era muito bom, e que eu deveria continuar investindo o meu tempo nele, e que era muito importante que continuássemos falando sobre aquilo, falando sobre aquilo por toda a eternidade. 

Eu já não tinha mais a eternidade pela frente; voltei para casa completamente arrasado e calado — alguns codependentes não dialogam nas horas graves; a ficha finalmente havia caído. Naquele momento enquanto dirigia o carro pela rodovia, veio-me à mente os belos discursos — o ego adora discursar  que ouvia de meu pai na infância; constatei então que os homens — incluo-me nesta categoria  eram capazes de proferirem palavras que criavam um belo, perfeito e maravilhoso caminho para os outros, caminho este por onde seus próprios pés, deforma efetiva, jamais pisariam — o orgulho é cego.

Meu estado depressivo que estava sob controle — eu teria muito dinheiro, e ricos não se deprimem — voltou; com ele a prostração, a raiva, a culpa, o sentimento de impotência... Até chegar naquela situação eu ainda sentia-me protegido pela minha reserva financeira, mas esta agora não existia mais, gastei tudo o que tinha enquanto construía o meu solitário castelo de areia.

Chegou finalmente aquele princípio de noite; não foi nada de extraordinário, foi mesmo algo corriqueiro. Ainda ouço as palavras de minha mulher: "Meu bem, vá à padaria e compre alguns pães". Como um bom codependente, eu estava ainda tentando negar tudo o que estava acontecendo; estava dizendo para ela que as coisas estavam em andamento lá em São Paulo; que estava aguardando uma ligação do gerente; que faltavam alguns ajustes finos, etc... — tudo conversa fiada, tudo conversa para boi dormir. 

Porém a padaria não vendia fiado, e eu estava completamente sem dinheiro, não tinha absolutamente nenhum centavo em minha conta bancária. Saí então de casa rumo, não à padaria, mas ao desespero, sem falar uma única palavra — codependentes costumam calar , sentindo muita culpa, muito medo, muita autopiedade, muita vergonha, muita raiva... todas as minhas vacas já estavam pastando nos meus depressivos brejos, meu coração estava cheio de sentimentos negativos, meus bolsos, porém, estavam completamente vazios.

No caminho rumo ao nada, encontrei a pequenina praça circular rodeada por ipês roxo que eu havia plantado em algumas manhãs de domingo; havia um banco lá. Naquele banco eu sentei e chorei de dor e desespero; naquele banco eu chorei um choro de raiva, impotência e vergonha; naquele banco eu finalmente roguei a Deus que me ajudasse, pois eu estava, sem a menor sombra de dúvida, moralmente e financeiramente falido. 

Depois da tempestade de lágrimas veio a bonança; fiquei mais um tempo sentado, já bem mais calmo, e então abaixei a cabeça e vi debaixo do banco a minha salvação: Uma nota de dois reais. Deus, sem dúvida nenhuma havia ouvido as minhas preces. Voltei para casa com os pães e alguns trocados no bolso e, dias depois, fui conduzido por mãos amorosas a uma Sala de 12 Passos. Desde então minha vida nunca mais foi a mesma, e a cada dia, reunião após reunião, minha natureza interior vai enchendo-se, não da efêmera glória do mundo, mas da graça de viver com equilíbrio emocional um dia de cada vez; tudo isto pela graça de um Poder Superior, que com uma simples nota de dois reais, transformou para sempre a minha vida.

Lá se vão vinte e dois anos deste episódio; de vez em quando passo pela praça e ainda observo o solitário e amigo banco por lá. Constato também, com profunda alegria, que os ipês crescem vigorosamente a cada dia, sempre em direção ao alto, sempre em direção à luz, sempre em direção a Deus.

Só por hoje serei feliz; só por hoje eu sou a pessoa mais importante da minha vida. Paz, serenidade e muitas 24 horas.






















Comentários

  1. Senti a sua falência, espelho meu! Quero sentir a gratidão!

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  2. Lindo! Só por hoje eu sou a pessoa mais importante da minha vida.

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